quarta-feira, 4 de julho de 2012

1000 - suíte para barcas ancoradas em desalinho


das coisas que eu mais gostava em mim
eu me fui perdendo, não sei se aos poucos
como certa tonalidade nos cabelos que
o imperioso curso do tempo vai moldando
não sei se de súbito, tal qual o cheiro das
manhãs quando se acorda o alumbramento
eu me fui perdendo, e estas coisas minhas
um certo sorriso de ingenuidade, o olhar
de encanto para o florir das coisas e das
pessoas, a cumplicidade dos abraços

das coisas que eu mais gostava em mim
o mar do meu sertão encheu de maresia
a caatinga assolou espinhos em toda pele
e eu fiquei neste raso engasgo de córrego
na solidão sem esperança dos jequitibás
eu me fui perdendo, e estas coisas minhas
como as retinas embebidas de alvoradas
como os girassóis aturdidos no arrebol
os cálidos entremeios de brisa e moinho
e todos os pálidos, os lilases e as nuvens

das coisas que eu mais gostava em mim
eu me fui perdendo, não sei a quantidade
não sei qual ponte se cumpriu em extravio
sei que os rostos se cansaram nas retinas
que o cardo dos lábios rugiu ambiguidade
e os atônitos gestos soçobraram exíguos
como a aleivosia que se impregnou no ar
eu me fui perdendo, e estas coisas minhas
deram a convergir espelhos e reentrâncias
precipícios e vazios, e petrificar o silêncio 






24 comentários:

Lídia Borges disse...

Há barcos sem ancoras aos quais nunca falta o mar
Como” fundear” tão belo canto?

Obrigada pelo maravilhoso presente de hoje.

Um beijo

Unknown disse...

Sempre encontro aqui um surpreendente poema. Este, em especial com voz e imagem que eu posso negar a perda que o poeta afirma, pois o tempo quando tira algo, acrescenta outra de maior importância: a experiência.

Que pena, amanhã é o último, e amanhã, não sei se ouvirei o canto.
Deixe rastros, poeta.

Beijos

Mirze

VILMA ORZARI PIVA disse...

O tempo, esse tempo que nos modifica, nos faz perdidos entre ondas de um mar de sentimentos e sentidos....nos envolve e nos devolve outro olhar.
Lindissimo poema!!!!Bravissimo!!

AC disse...

Perdemo-nos enquanto estendemos os olhos e os braços na tentativa de encontrar, perceber...
Em grande, poeta!

Abraço

Sueli Maia (Mai) disse...

E vamos nos despindo vida afora.
Vamos largando coisas, descamando a pele...
e cometendo poesia você chegou ao poema de número 1000.

abraço,

Nicast disse...

Lindo!
Muitas dessas coisas você nos deu em seus poemas. Espero poder continuar te lendo em algum lugar...
Bjo

Everson Russo disse...

E a vida é assim,,,muitas coisas boas de nossa essência vão ficando pelos caminhos da vida....abraços de bom dia pra ti.

Adriana Godoy disse...

Assis, essas barcas sem âncoras aportaram em mim. Maravilhoso!
Vale o número 1000. Beijo

O Neto do Herculano disse...

Depois do amanhã
o que virá,
o que será?
1002 poemas?

Joelma B. disse...

Fiquei emocionada e bateu uma saudade!!

beijinho, mestre Assis!

Ingrid disse...

perfeição sempre...
o que vai ser à partir de amanhã?..
beijos meu querido poeta..

Ira Buscacio disse...

É verdade!
A gente vai perdendo peles, ao longo do caminho, esse é o destino inevitável do homem. Deixamos pelo chão, não sei contar os números, tanta beleza e horror, tantos risos e lágrimas, tantas nuvens e tijolos, mas, uma coisa é certa, sempre fica algo, nem que seja o silêncio.
Aqui, todas as vezes, me comovi com tamanha sensibilidade que encontrei em cada esquina, em cada mar, em cada lilás, em cada urgência e só levo uma tristeza... a de não ter descoberto antes a imensidão do poeta.
Sigo-te, além dos 1001, talvez a sombra de uma árvore frutífera ou o que mais vier.
bj imenso, poeta maior

LauraAlberto disse...

Assis,

ao longo da existência vamos nos perdendo e mantendo a ilusão de que um dia nos encontraremos, mas é mais o que se perde do que aquilo que se ganha...

este dava um texto excelente para ser o ultimo, o 1001

beijo

Bípede Falante disse...

E parece que com as coisas que ele foi perdendo, fomos nos achando...
eu fui :)
Vou aguardar o derradeiro dia e depois passo a colher os frutos da sua árvore, mas com saudades, Assis, dessas mil e uma noites de poesia.
Beijoss

Anônimo disse...

Na infância, vamos catando cada miudeza do caminho; na fase adulta, vamos nos desfazendo, vão ficando tantos vestígios nossos por aí.

Adorei o vídeo também!

Beijo.

na vinha do verso disse...

o que mais gostava em ti
partiu
em poesia

por isso
bela poesia

(poetas canibalizam suas ausências)

forte abraço Assis

Daniela Delias disse...

No penúltimo faltam-me palavras...
:(

Bjo

dade amorim disse...

Dessa vez vc se superou, Assis, e o poema é de uma beleza que chega a doer um pouco, se a gente se identifica com ele (quem não se vai perdendo das coisas que mais gostava em si?)
Um beijo e parabéns pela beleza declamada.

Anônimo disse...

Assis, lembrei-me deste poema, tudo para lhe dizer que perder-se é encontrar-se, que está no caminho da unidade (poetas assim não morrem nunca!)e dirá, por fim:

Não se perdeu nenhuma coisa em mim

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Se sentia um aperto no coração aos 999 poemas, digo agora que o ataque cardíaco está por questão de horas!

Beijo !

Primeira Pessoa disse...

guardou um poemão pra véspera.
gostei demais, zé de assis.

Vais disse...

Barcas ancoradas em quantos portos ao longo e que ao primeiro sopro içam as velas rumo às alvoradas, aos arrebóis, aos desassossegos, aos delírios...
quebrou tudo aos olhos e ouvidos
1000 porreta!

bejinho, Assis

Cris de Souza disse...

Quer me fazer chorar a esta hora da manhã? Só pode...

Parabéns, mestre!

Jorge Pimenta disse...

a bater cada vez mais forte esta aproximação à amurada final...

abraço!

Catia Bosso disse...

Que lindo!

bjs meus

CAtita