I
eu teria começado em silêncio a
meditação.
mas tu sabes que não há lugar no mundo
em que o ruído já não esteja instalado.
sofro de negativas intermitentes.
esse diagnóstico veio junto com a
afasia,
caracterizada por longos circunlóquios
e pelo uso excessivo de referências
indefinidas
como "coisa" ou
"aquilo".
são recorrentes: a síndrome de ménière e
a
inflamação da escápula em dias frios.
de outra maneira circunda-me a ânsia
do desmedido, do inopinado, ainda que
tudo medre no circunspecto.
II
aos doze anos li todos os livros de
hesse,
aos dezoito assisti vorazmente os filmes
de bunuel, aos trinta desisti de tudo
inclusive de mim, acho que por
influência
do pássaro de bukowski.
assim, destituído de propósitos, só me
restou a literatura. não a grande
literatura,
a alta literatura, mas essa coisa
mesquinha
de escrever sobre vazios, rasgos,
solidão, angústias e ausências.
Ao mesmo tempo, os olhos cativam
distâncias
E o peito soletra segredos.
Alguma coisa se bifurca entre os passos,
Quase sempre a respiração pede pausa
Os desaparecidos me fitam sem
sobressalto
Tenho roupas para dias santos e feriados
Mas não comungo o uso de sapatos.
III
Em algum outro ponto da estrada sei que
estás
E sei que as correntes amordaçam a
língua
As flores ensandecem a primavera, zunem
Prefiro estações inconsequentes
Como aquela em que nos vimos em sorriso
Tu fumavas distraída, o vento insistia
E eu fui atraído pelo cheiro que
emanavas
Entre goles, tragos e preciosos
silêncios
Fomos nus descobrindo a pele e a amplidão
Havia infância em nossos destinos
Eu te sonhava em futuro de linguagem
Até exaurir as possibilidades de
infinito
IV
Sofrer com as aliterações e pronominais
Alterar o curso de um verbo, desconjugar
Sim, o coração é este poço inconsequente
Adornam-me palavra e pele na fruição
da linguagem, vivo em situação de visgo
dos teus olhos me percorrem vertigens.