quinta-feira, 31 de maio de 2012

966 - Antipoema para o dialeto das chuvas


Meu poema não se contenta
Em apenas ser a palavra
Meu poema quer ventanias
Sílabas em alvíssaras
O rugir de todas as águas
Encantamento de ar e asas

Meu poema não se contenta
Em ser apenas a palavra
Meu poema quer as pedras
O rico mineral nos desvãos
A afetividade da linguagem
Impregnada de tez e solidez

Meu poema não se contenta
Em apenas ser a palavra
Meu poema quer volúpias
A demência do entendimento
O estado vegetativo da razão
A lira em regência inaugural

quarta-feira, 30 de maio de 2012

965 - Ciranda de reinvenção do amor


Quando tudo era princípio
Havia o rútilo tão fecundo
O infindo rugir do espanto

Quando tudo era princípio
Havia a lua girando bemol
Vinhas tu: estrela e arrebol

Quando tudo era princípio
Havia ventura e descoberta
Lençóis em dádiva e oferta

Quando tudo era princípio
Havia a candura do verbo
Luzindo no cerne da carne

terça-feira, 29 de maio de 2012

964 - Canto de quimera para geografia do arrebol


O lugar que não existe me guarda segredos
Num repente de ventura e padecimentos
Faz chuva, sol, arco-íris, venta quimera.

No lugar que não existe frágil se respira
Tão doce é a pétala de luz que se descerra
Lá a textura do canto reinventa o silêncio

No lugar que não existe o perto é demasiado
As distancias estão ao alcance dos olhos
E sutilmente se percebe a borda do arrebol

segunda-feira, 28 de maio de 2012

963 - Poema de fastio para insanidades do verbo


Meus girassóis não se cansam de entardecer
Vez por outra desatina a aparição de horizonte
No lampejo ensandecido de oboés flamejantes

Meus girassóis não se cansam de entardecer
A infestar de grisalhos a fronte dos córregos
A escorrer demência na artimanha do tempo

Meus girassóis não se cansam de entardecer
Na escória dos caracóis que vão se despetalar
A engendrar retardos no alvoroço dos retratos

domingo, 27 de maio de 2012

962 - poeminha para todos os metaplagios


eu leio e tento esquecer
para não me atormentar
por imagens e palavras
que ainda serão minhas


* A Cris de Souza cantou junto


Metaplágio para todo o poeminha

eu leio e tento escrever 
para não me atropelar 
por imagens e pá-lavras
que ainda serão vinhas


sábado, 26 de maio de 2012

961 - réquiem de angústia e aprendizagem do vento


invoco ventania e tempestade
num périplo de exagero
quem teria sido eu:

a rota pessoa sem margem
o invólucro de um incômodo
:dou-me pois em epitáfio

sexta-feira, 25 de maio de 2012

960 - ensaio para figuras de pedra e serpentes de bronze


regresso contigo antigo e roto
sobre as ondas que andei
neste céu de rugas azulado

o horizonte a arder de nuvens
invoca pássaros de asas frias
e peixes de lâminas diáfanas

sou ainda o rio que corre comigo
a mácula inerente de uma saudade
o torpor a velejar o vazio do mundo

quinta-feira, 24 de maio de 2012

959 - variação com intermezzo sobre poema Sal de Daniela Delias


da dor espero o corte
espesso como saliva
na sede do vazio

e se vem lento
o vento
atiço a lenha

a cica é por um triz
travo afiado
de sorte e morte

mias um dia e passo
de língua e sal
o imã desse arrepio

* o poema da Dani está aqui Do lado de cá

quarta-feira, 23 de maio de 2012

958 - poema de perplexidade ante perguntas inúteis


(fragmentos)

para onde correm os rios em tempo de estio
asa de passarinho produz elevação de canto
descaminho é uma estrada para nunca mais
flor de beira de estrada incendeia os passos
orvalho é a chuva em estágio de anunciação
a palavra vazio vaga num precipício sem fim

terça-feira, 22 de maio de 2012

957 - Canto para o amor e outros desalinhos II


(ou breve estudo sobre a natureza do alvoroço)

eu deveria ter desinventado o ontem
antes de me despertares o amor
porque já não tenho olhos
a minha pele é campo roto
e meus passos são o trôpego
ensaio de descaminho e abismo

eu deveria ter desinventado o ontem
com as mãos apalpando o vazio
o coração destronado e puído
antes de me despertares o amor
sem esta taça de vinho, sem o
fervor de nuvem a me consumir

eu deveria ter desinventado o ontem
com as palavras já cumpridas
as geografias enfim pacificadas
os girassóis em rito de ascensão
na calmaria de uma brisa leve
antes de me despertares o amor

segunda-feira, 21 de maio de 2012

956 - Ensaio para circunavegação de arrebol


p/ Lelena Terra Camargo

Há o que queima e incensa os dias
De torpor e melancolia
Numa ária metafísica de quimeras
No regaço d'uma insensata geografia

domingo, 20 de maio de 2012

955 - Canto para progressão infinitesimal


Intento o verbo único
O verso absoluto
Que mesmo vazio
Seja múltiplo

sábado, 19 de maio de 2012

954 - Canto para o amor e outros desalinhos


Essa coisa de amor entontece as palavras
Embriaga, desatina, entorpece:
Produz algazarra nos gestos e sentidos

Essa coisa de amor é difícil de enxergar
Uma ária de pleno desconhecimento
Ensaio de nuvens no horizonte assustado

sexta-feira, 18 de maio de 2012

953 - improviso para lâminas, pedras e oboés


afio nas pedras minhas retinas
fio por fio a coser melancolias

e o fino tecido a que me alinho
flui na imensidão devagarinho

colho nos olhos rios de algaravia
do aturdido caminho sem utopia

quinta-feira, 17 de maio de 2012

952 - Ensaio de remissão para estrelas imensas


Vinhas em lua distante, em festa de arrebol
Ária para se cumprir em horizonte indócil
Na origem vertiginosa do arrebatamento

Vinhas com a intensidade da flor ao vento
Num ressoar de cordas em ato de vibração
Tão absoluta como uma nuvem apascentada

quarta-feira, 16 de maio de 2012

951 - berceuse de náufrago para refúgio de temporal


dos olhos quero a dobradura do pranto
o mar desavisado a banhar-me o canto

do peito perquiro naus e refúgio de vela
o feitiço de cordas rugindo em rebuliço

do coração nada posso intuir em prece
há o desvão de sílabas em passo célere

terça-feira, 15 de maio de 2012

950 - concerto de outono para cravo e mão esquerda


eu me tenho nos teus lilases
em pertencimento de alvorada
como asa que anseia elevação

eu me tenho em ti e tão perdido
neste alvoroço de descobertas:
leve anunciação de pasárgada

eu me tenho na rota do helianto
que gira e assinala o teu norte
vento e vela para as tuas naus

segunda-feira, 14 de maio de 2012

949 - ária de pranto para lâminas fugazes


nada corta mais que este silencio
emoldurando cílios em tua face
esta sensação de desapego
nos lábios interditados

nada corta mais que este silencio
que outrora já foi cúmplice
nada corta mais, nem a lâmina
desafiadora do soslaio

nada corta mais enquanto acordo
e o corpo é poço de reticências
nada corta mais que este vazio
no precipício do silencio

domingo, 13 de maio de 2012

948 - quando o peito não cabe em desassossego


eu mal sei de mim
às vezes vento
às vezes miragem
tenho dores antigas
saudade, remorso
vivo o descontínuo
o que sempre passa
só as unhas edificam
a crueza na pele
a lamina nos olhos
eu mal sei de mim
e teimo em te amar

sábado, 12 de maio de 2012

947 - um outro poema de mar e asas


colho esta tua áspera maresia
como se migalhas do mar
fossem pássaros em arribação

colho esta tua áspera maresia
como se meus olhos atônitos
fossem o norte da tua ausência

sexta-feira, 11 de maio de 2012

946 - poeminha para contemplação do caos


um dia
eu prometo
vou lá fora
ver o sol
não agora:
é noite
e eu preciso
me afogar
(de ti)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

945 - haikai de vinil


em matéria de poesia
eu leria Leminski
até arranhar o dia

quarta-feira, 9 de maio de 2012

944 - poema para fígados e corações destroçados


o pássaro gritante deu de me sobrevoar
vinde corvos, chacais, sou apenas de ti
ateu, prometeu, imerso nos versos teus

terça-feira, 8 de maio de 2012

943 - sinopse de outono para filme noir


uma casa, um telefone,
uma saudade:
há tantas coisas minhas
espalhadas, esparsas,
cavalgando o amargo
suor da tua ausência

segunda-feira, 7 de maio de 2012

942 - sumário sobre o revés da navegação de corpos


sabes, o mar é este impulso para o nunca mais
lugar de desterro dos ossos, naus e apátridas

sabes, o vento é este vazio n’alma em soçobro
que sopra os faróis na distancia de lei e léguas

sabes, o silencio é esta ausência sem anúncio
a pele nua de um alvoroço, um tropeço sem fim

domingo, 6 de maio de 2012

941 - poeminha de nuvem sob areia e pele


em tempo de sol
compartilho
os pés no chão

e desconfio:
terra é contágio
para elevação

sábado, 5 de maio de 2012

940 - notas para um breviário de desencanto


“Uma pessoa escreve não porque tenha algo a dizer, mas porque tem vontade de dizer algo”. Emil Cioran

Corre embrulhada junto a mim,
a vertigem de horas e dias.
O sinal de desassossego que
me veio marcado na pele.
Não tenho sorrisos à alvorada.
Não tenho mesura nas frases.
Cada palavra assustada
é o esboço da decadência.
As verdades escorrem no
silencio da incompreensão.
A furiosa dúvida relincha
no horizonte em desequilíbrio.
Enquanto o pasto alimenta
o sono que me encurrala.
Intento o verbo da sedição,
mas detenho parcos vocábulos
e há o oceano que ruge
o sangue deste alvoroço.
O corpo é tão mínimo
Para abrigar tantos vazios.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

939 - ensaio mnemônico sobre a natureza dos raios


eu também já fui azul, amor
e era sobressalto todo o dia
zumbiam estrelas nos ouvidos
havia alvíssaras nos cabelos
meu olfato tinha sabor de rio
me ocorriam nuvens nos passos
os olhos eram asas de passarinho
a vertigem era promessa do súbito

eu também já fui azul, amor
e era desconcerto o meu dia
de alumbramentos e pasárgada
um arrebol tecido de arco-íris
a teia vívida e eterna de orvalho
o horizonte descortinava epifanias
não me faltava silencio no orbe
e eu me fartava de amanhecimentos

quinta-feira, 3 de maio de 2012

938 - Ária em desconcerto de epifania, rito e passagem


A natureza da poesia é o espanto
Elevação de nuvens, suspiros
A inquietude dos girassóis

Águas que atiçam o desatino
Fervor de estrelas desfolhadas
Répteis em sorriso de jardim

A herança de breve eternidade
Crisálida do instante em desafio
A natureza da poesia é naufrágio

quarta-feira, 2 de maio de 2012

937 - Cantiga de bem-querer para evidência e fulgor


nado no sobressalto do teu olhar
numa correnteza de quimeras
no mavioso assovio das retinas

neste vasto horizonte de pálpebras
descerro a nudez do meu silencio
a incompletude de muitos vazios

terça-feira, 1 de maio de 2012

936 - canção de desterro para heliantos tardios


quem vai estar do outro lado da ponte
quando já não houver mais paraíso
e os oásis se fecharem em deserto

quem vai estar do outro lado da ponte
quando eu me for inteiro silencio
qual será o hades que há de vir