quarta-feira, 31 de agosto de 2011

692 - sonata de ausência para atavio e armas brancas

perdi-me em ausências
em prólogos intermináveis
sob a prateleira jaz um coração
desde o dia em que me vi acorrentado
tentando carpir a intempérie do amor
o mesmo amor que outrora foi alvíssara
mas quem há de ser sombra se fora já luz
quem há de habitar hades atabalhoado
na loucura de pares em esquiva caminhada
perdi-me em ausências
nessa desordem cotidiana do ser e coisa
sob a prateleira jaz um coração
o mesmo que um dia fiz de oferenda
o mesmo tumulto, a mesma refrega
o amor fez seu travo, deixou sua cica
perdi-me em ausências
sob a prateleira jaz um coração
quem há de cavalgar mais um dia
quem há de ver o lume no fio da lâmina
quem há de quebrar o encanto frio da adaga

terça-feira, 30 de agosto de 2011

691 - sonata de ausência para barco, quebra-mar e violoncelo

não há contemplação
as balsas se espraiam no horizonte
acendo o cigarro e trago o arrebol
caminho entre sargaços
que o mar empresta a terra
aqui há um cheiro embevecido
que faz refúgio nas têmporas
seria melhor se chovesse
e todas as águas se misturassem
e se perdessem em sacrifício
no encontro de sal
e quatro átomos de carbono,
brandura e delicadeza
coisas que já não tenho
mesmo quando soam os acordes
e um cello desavisado me abotoa
de lembranças e tudo é um travo
como aquele que desbotou
na mancha da calça, no tecido fino
da camisa, nas meias e nos sapatos
quando as portas se cerraram
quando os lençóis se condoeram
e nada aquecia, e nada acalentava
a ausência nos meus pés umedecidos

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

690 - estudo étimo para o atalho das marinhas

tu me soubeste sal para regaço da língua
sob o desígnio das trovoadas eram riscos
raiando a alvorada em folguedos e guizos

tu me soubeste espinho na tua inquietude
em que abraçavas o espanto sem máculas
e soçobravas no sumo de atônitos desejos

tu me soubeste no atavio para tuas vestes
ornadas de semblantes, desvarios e fugas
eu era o único soluço a despir os girassóis

domingo, 28 de agosto de 2011

689 - sobre o impossível da poesia e outras levezas do vento

de nada adiantaria o amor
essa praga que alucina os dias
de nada adiantaria
se das cavernas não se repetissem
em rito os hieroglifos
de nada adiantaria
se não pintassem os esquivos traços
nas retinas de tantas cores
de nada adiantaria o amor
se a palavra não pudesse exasperar
de nada adiantaria
se o silencio não se fizesse
refúgio de todo o verbo
de nada adiantaria

sábado, 27 de agosto de 2011

688 - Metapoema para alvorada, carícia e bem-me-quer

Se tu me visses os olhos em alumbramento
Lembrando o germinar das tuas cortesias
A mesura com que me enlaçavas as mãos

Só assim me terias ouvidos para o arrebol
Contemplarias a cantiga de retina e órbitas

Se tu me visses os olhos em alumbramento
Luzindo a azenha na toada que move a água
Saberia que só o tempo nos inventa desatino

Só assim nós seríamos completa equivalência
Esse rasgo de azul que pacifica céus e nuvens

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

687 - ária de desamparo para canto coral e violino solo

urgem os arrepios nesta trilha de rubro
cantem os desatinos
urgem medéias, tristãos, édipos e infantes
cantem o desencontro
urgem rosas, violetas, jasmins e girassóis
cantem os destemperos
urgem mãos que enlaçam retina e fronte
cantem o desassossego
urgem ritos para incendiar pontes e ilhas
cantem os desvarios
urgem demônios cavalgando as palavras
cantem o desalinho
urgem trilhas para os incautos e insanos
cantem os desenganos
urgem moitas, veredas, soslaio e gravatás
cantem o desembaraço
urgem aflição, medo, atavio e desespero
cantem os descompassos
urgem ponto, parágrafo, sina, vida e morte
cantem o desenlace

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

686 - loa para a senhora de fulva cabeleira ou quando o vento habitou o precipício


ela se foi lançar outro infante com olhar e arrebol
tinir as sobrancelhas da ventura com o desatino
mesmo que eu visse que a uma nau embarcaria
e faria destino por entre icebergs e luas geladas
pois do solo da caatinga ferviam ainda os cactos
enredados de seus espinhos em trôpego cavalgar

ela se foi lançar outro infante com olhar e arrebol
espargir o soluço que desabriga os pés incautos
mesmo que eu visse que a uma nau embarcaria
e faria destino por entre fiordes e tépido bosque
em brasa se alimentavam os meus olhos fúlgidos
na espora do anel da senhora de fulva cabeleira

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

685 - sobre quando a areia incita pés descalços

era areia a pele deste desassossego
finos grãos a inventar os meus olhos
fazia tempestade por dentro a retina
eu molhava de passos teu passado
e os pés sorviam desavisado destino
era areia a pele deste desassossego

terça-feira, 23 de agosto de 2011

684 - cantiga para as águas que habitam os córregos e regatos

foi o gesto impreciso da tua mão que veio me visitar
a serenidade desse céu em que espargem nuvens
a melancolia de tantas horas premeditadas ao ócio

foi o gesto impreciso da tua mão que veio me visitar
envolver de suavidade esse regaço que contemplo
esquecer a sede e o tormento que aniquila o tempo

o orbe da palavra murmura memória: disse o poeta
como devaneio desperto criar aquilo que só vemos
neste gesto precioso da tua mão que veio me visitar

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

683 - ária de almas imprecisas para o navio fantasma de wagner

quem sabe do mar acolher as suas vagas
supõe do amor corrente de fiel fantasma

quem sabe assim em velas colher desdita
supõe do amor lealdade de vento em proa

senta na calma nuvem que obnubila o céu
senta em desatino de alma à procura de lar

domingo, 21 de agosto de 2011

682 - ária de preceito para adaga e lenço branco

não me soube vento em passeio por tua pele
como não me sabia sopro no encargo da voz
não me sabia sinal das tuas possíveis cartas

acumulei de presságio duna e branca nuvem
no céu habitei retinas de horizonte e arrebol
no caminho de lajedo e pedra deslizei silente

não me soube augúrio no passo da chegada
não sabia que no fado da água povoa soluço
de nada sabia e me afogavam língua e verbo

sábado, 20 de agosto de 2011

681 - madrigal de lisonja aos encantos de senhora e lavanda

com quantos nomes assinaria por ti o amor
pois de amar se colheu múltiplos ramos

e nesta enseada onde vicejam areia e pés
e nesta paisagem de nuvens em alvoroço

cumpre o vento de seguir-te os passos
cumpre o pássaro de alçar-te em voo

com quantos nomes assinaria por ti o amor
pois de amar se acolheu o fogo em sossego

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

680 - ária de entardecer para senhora de alfabeto delicado

seria preciso adentrar os ismos
para alcançar a verve do improviso
ela escreve em alfa, beta, gama
flutua por arcturus, antares
ledo engano quem pensa em augúrio
é uma pena que flui em correnteza
sabe aquele assovio de pássaro
aquela cantoria de festa do feijão
aquele assomo de realeza em desatino
uma escrita em princípio de elevação

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

679 - poema para ruir os últimos moinhos de vento (metaplagio em cascata para solista e coral)

a noite fez ruir teus cílios, minhas sobrancelhas
a noite fez ruir teus cactos, minhas madrepérolas
a noite fez ruir teus insetos, minhas mariposas
a noite fez ruir teus pastores, minhas alcateias
a noite fez ruir teus quandos, minhas incertezas
a noite fez ruir teus quadros, minhas molduras
a noite fez ruir teus mapas, minhas geografias
a noite fez ruir teus idílios, minhas fantasias
a noite fez ruir teus sinais, minhas idolatrias
a noite fez ruir teu alfabeto, minha idiossincrasia

a noite fez ruir o silêncio, o girassol, o moinho de vento,
a atônita sinfonia, os florais de bach, a orelha de van gogh,
o adagio de mahler, o quinto, o sexto e o sétimo selo,
toda a cavalaria e meus alamares

a noite fez ruir minha repetição, a medíocre poesia,
o último trago do cigarro, aquela cena de cinema,
binoche, deneuve, delon,
o salvador, a memória e as insígnias do tempo,
a pasárgada, o bandeira, a sentinela,
o vizinho, o cravo nos dentes,
o inútil bem querer que insisto em outorgar

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

678 - poema para ruir os últimos moinhos de vento

a índole da palavra viceja em órbita
salta aos olhos a cada parágrafo

a cada pausa
é preciso colher as intempéries

no risco, no riso, na alegoria
projetar de silencio a imagem

a cada desatino
sussurrar o alfabeto de espanto

quem sabe o poema nasça
com esse viço de elevação

quem sabe o vício enlace
esse fluir de regato na alma

terça-feira, 16 de agosto de 2011

677 - récita alegórica para ermo, grade e jardim abandonado

Canso-me deste enternecimento das violetas
Agatea, leonia, mayanaea, isodendron, viola
Tão sensíveis na desoladora procura por ar

Logo eu que afoito no passo vivo a arquejar
E os olhos cansados debruçam-se púrpura
E a mão há muito não colhe senão ausência

Canso-me deste enternecimento das violetas
Como me cansam paisagens pejadas de sol
Caiu-me a noite em madrugada sem floração

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

676 - poema para a alegria de Bach e floração de Vincent

quando eu era menino e ouvia bach
havia jesus na alegria dos homens

depois eu adulto, só e desencontrado
caem-me as tintas de tosco entardecer

perambulo no esquecimento desperto
procuro a orelha esquerda neste trigal

van gogh se aproxima com os pincéis
breve teceremos cantata de girassóis

domingo, 14 de agosto de 2011

675 - poema desencontrado para gioconda ao arrebol

caiu-me o poema em ventania
eu que de ladainhas me repito
quero acoitar-me nos desvãos
encontrar a récita para assalto
e tirar verso do encantamento
que se desnuda no cílio casto
na linha dúbia deste entardecer

sábado, 13 de agosto de 2011

674 - ária de contralto sobre desolador cello de Barber

Deram de florescer magras petúnias em meu olhar
Ficaram róseas as retinas na paisagem umedecida

Parece que as mãos calosas de um deus petrificou
A tua imagem nuvem no céu caudaloso de agosto

Não me cansa carpir sobre o ermo que é a espera
Infinda prece que se abriga de silencio no alpendre

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

673 - rapsódia para quando ventarem os girassóis de agosto

depois que ela se foi com as intempéries de agosto
eu fiquei com esta face em desalinho: os pés atados
caminho sobre pedras como se em lanças afagasse
tenho dito as cotovias que nenhum canto nos salva
mas elas insistem e eu fico atônito entre sustenidos
outro dia lagartos deram de açoitar versos e estrofes
queriam o sabor das auroras em germinação estéril
depois que ela se foi com as intempéries de agosto
meus instintos se arvoraram em verbo ensandecido

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

672 - variação para cello e oboé em agreste rapsódia

tão sutil o visgo dessa sede
seiva que escorre em lábios

eu querendo florir a tua pele
voce esquiva em pas de deux

aprendiz estágio de purificação
corpo em sublimação de altura

não fosse o casulo que me cala
não fosse desatino ao derredor

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

671 - Cantata em rito para novena de sete noites

é preciso acolher tempo e silencio
sou rio nessa empreitada de mar
e os olhos deram de acender nuvens
vejo girassóis em abóbadas e auroras
assim me alimento de contemplação
mesmo vazio pesam-me as algibeiras
deve ser o estranhamento que carrego

terça-feira, 9 de agosto de 2011

670 - rapsódia de alumbramento para gioconda ao arrebol

seria imperioso que os teus olhos passassem
com esse jeito desconexo de fitar o desalinho
como se a coisa mirada estivesse embebida
numa aura de equidade entre os hemisférios

seria imperioso que os teus olhos filtrassem
a maresia que contamina o espelho do asfalto
reflexo de rotas e extravios, obituário de sais
e ficassem no lusco-fusco que atrai mariposas

seria imperioso que os teus olhos declinassem
de toda a singeleza que envolve as cartografias
e de repente altiplanos, horizontes e metáforas
fossem apenas precípuo para o alumbramento

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

669 - rapsódia incômoda para extravio e embaraço

algum tempo acreditei na pele como atavio
e que a têmpera dos anos fosse delineando
o descaminho que flora na carne os sentidos

mas sob o impacto dessa chaga que me arde
diviso a luz que trespassa os corpos em sede
sei que a aurora fenece sem alarde e encanto

hoje tenho as mãos enredadas em solilóquio
nenhuma sombra acompanha-me de acalanto
nenhum canto suprime a inutilidade do existir

domingo, 7 de agosto de 2011

668 - rapsódia desencontrada para estados químicos dos corpos

não guardei os caminhos que me trilhaste
mas as intempéries trago-as triste
o sol em destempero neste agosto

esta vontade de lua cheia
acende lume nos invertebrados
cada toque arisca a pele em chagas

tu não me ensinaste apascentar a chama
queimam-me os sóis em querelas
nem os peixes se refrigeram em líquido

sábado, 6 de agosto de 2011

667 - metaplágio para tempestades de início do verão

acaso tu sabes dos percalços
que imantas em meus olhos
quando desavisada
irrompes neste silencio
e todo o mundo se concentra
no achado das tuas mãos
e todas as órbitas
giram desencontradas
e eu no mais fundo sacrilégio
mergulho em prece
neste infindo precipício
de línguas, bocas e peles

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

666 - metapoema assustado à guisa de portos cardeais

ao oeste do que me vive
comove o verso que leste
és meu norte por todo sul
mesmo em sol quando suo

intuo de arroubo o sumo
da palavra atada ao cais
para subverter da sílaba
vértebra nua em voo cego

* A Dani me fez feliz oferenda aqui

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

665 - prosa rasa para rútilo cintilar

a poesia escoiceia a didática
obcecada pela ânsia do espanto
ruge aos sentidos em oferenda
para fluir trôpega na vertigem
lamber os parágrafos da língua
improvisar um rito de assombro
saciar assim o céu de elevação

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

664 - estudo para étimo consoante aboio na caatinga

por pura assepsia retiro a palavra estéril
deste dicionário idiossincrático que velo
como velam o cuspe sonoras carpideiras
como os velhos velam o tempo da espera

também seria a palavra reverencia retirada
por pura simbologia ao dicionário que velo
como velam as árvores na paisagem tardia
como os ventos imolam o casco do navio

seria de bom alvitre por fastio em retirada
pelo que se denota a acepção da palavra
numa espécie de cansaço, fadiga, afronta
numa inércia que deixa repousar o volátil

deste dicionário que velo o silencio bastaria
como flecha para atingir todos os sentidos
como manto para tingir o véu de toda face
como um acalanto para tanger o intangível

*Bate-papo comigo no blog do Gustavo

terça-feira, 2 de agosto de 2011

663 - repentino ávido para lumes do arrebol

há um assombro de impaciência
sob a tênue luz dos vagalumes
quando teus passos se deslocam
e fito fixo esse espelho que me és
destino inexorável, risco de tristeza

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

662 - repentino casto para amoras, violas e oboés


para decompor-se
em fidalguia no teu olhar
urge a aurora de assombros
anuncia-se o sobressalto de luz
o jasmim refrigera-se no orvalho
enquanto do outro lado da moeda
acena-me o infortúnio das tuas mãos