segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

508 - Canção de rogo à senhora dos vazios

Tanto custo para escrever o poema
E tudo se desilude no primeiro verso
Por que não gostaste das vacancias
Das aliterações, do abluvião subjetivo
Mas posto está na página estancado
Inclusive essa coisa de florir silencio
De entrecortar cílios, carpir retinas
Porque os versos captam fragrancias
E a cada estertor da palavra soa aroma
Que vai a véus e céus desejar tua boca

domingo, 27 de fevereiro de 2011

507 - Segundo exercício para o ciclo de nove luas

Tudo é infindo no exercício da palavra
No labor sagrado de língua e linguagem
Linhagens que se misturam em véus
No aliterativo primitivo do único verso
Aquele que principiou as cosmogonias
O cultivo do céu que prescinde a razão

sábado, 26 de fevereiro de 2011

506 - Exercício para o ciclo de nove luas

Doem-me os olhos
duas fontes duas torres
Doem-me os olhos
duas garças, duas graças

dói-me a estrela que brilha
a mão que apascenta nuvens
dói-me a face deste horizonte
dói-me o infinito dos séculos

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

505 - Metaplágio para Borges e Heráclito

Quem me apagará as cores desta manhã
Quando todos os córceis se recolherem
E como em procissão vierem beber no rio
No veio desta água sagrada de todo tempo

Eu que esculpi étereo em lúdicas paragens
E que verti em precipício a lucidez da hora
Quem me apagará as cores desta manhã
Se me corre nas veias o sangue da ruína

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

503 - pequeno ensaio sobre realidades naufragadas

certa vez a ouvi dizer
que a única coisa verdadeira
que podia oferecer
era um orgasmo:
não perguntei se meu ou dela

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

502 - breve canção para um dia azoinado

será que teus olhos funcionam por auroras
pois quero assim um dia te amanhecer
lírio quebrado nas dobras de um embaraço

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

501 - dicionário fundamental de alfarrabista


eu rezo por um poema mínimo
faço prece pela poesia pouca
para que se gaste menos a palavra
e se arrisque mais a saliva

domingo, 20 de fevereiro de 2011

500 - Canção de infortúnio para olheiras e guelras

outrora foi o pranto que vazou a garganta
penetrou nas chagas da pele, fez moradia
eternizou-se em montanhas de silencios

essas estranhas correntezas corróem-me
são silvos no meio de tormenta e estrada
cantam comigo o desvario de tantas vozes

outrora foi uma palavra de gesto destituído
compilada na enciclopédia das galáxias
a irromper–se em predicados de gula febril

senhoria de tantos mistérios a quem invoco
em triste cantilena sobre preces e pretéritos
nesta tarde em que se ruflam todos os poentes

Poema para a postagem 500

CANTILENA

às vezes eu penso, ou então não penso.
às vezes cresço por dentro e então digo:
de quem é esta terra mais pequena, aquele
espaço no cabelo mais pequeno tão quando
a tua mão tão na minha? apertá-la é um lugar
muito perto. e digo ainda: quem é a locomotiva
de silêncio? lá fora é dia e a noite é um moinho.
sim, a planta entende as tuas pernas porque canta
nelas. a mão bate na cara, a canção hoje canta!
se alguém me perguntar eu digo que a beleza
é uma garganta toda azul a escorregar no céu.
e falo numa máquina feia de segredar ao ouvido.
quero comer o mar
quero um silêncio assim durante quinhentos poemas

Rui Costa

sábado, 19 de fevereiro de 2011

499 - Poema para súbito concerto lúdico

Ela entrou com o silencio dos meus anseios
Desavisadamente pousou sílabas ao chão
Eu que recorro ao singelo para melopeias
Fiquei com a monalisa de saltos engasgada

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

498 - metaplágio para um coração numeroso

quem disse que deuses mandam mensagens
talvez deusas que se apiedam do nosso passo
a rua continua ventando uma correria
as vitrines pululam recheadas e sublimes
através delas se constroem heresias
o mar não findou na avenida, caro poeta
bicos de seios reluzem no tráfego de olhares
as minhas mãos são o relicário das horas
a cidade não sou eu, não sou eu, meu amor
p.s.
a vida para mim é uma vontade de não sei o quê

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

497 - algum dia: para quem se foi no laço do adeus

também eu estou aqui
tentando decifrar esta tarde
tentando cravar interrogações
para o que não mais existe
resta-me esta conta insolúvel
- a praça de tamarindeiros
- a cicatriz na garganta
o verbo que não consigo verter

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

496 - outros dias: a quem queria atroz

roubo a tua rútila oscilação de olhares
revelo as dores que me cortam a machado
no mais navego tonto e afoito nesta mão
que não me deixa de paz ciente

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

495 - aqueles dias amanheciam ferozes de alegria

por vezes sinto o cheiro de mar que invadia
a silhueta das vidraças em suas vazantes
e acintosamente vinha se debruçar na varanda
tu eras a efêmera aparição dos dias ensolarados
a atiçar desejos e bailados a cada passo
eu era o gira, o gira ao teu redor
satélite gravitando sob tuas sápidas oferendas

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

494 - para ela que um dia flutuou sobre minhas palavras

porque rugem ventos de impaciência
na previsão de uma carta astral
porque suicidam-se altivos druidas
na insolência desta calma alvorada
porque as vestes da rainha foram depostas
na clarividência de uma rubra aurora
porque um dia ela flutuou sobre minhas palavras
e eu não tive ímpeto para contentar esse voo

domingo, 13 de fevereiro de 2011

493 - Canção em resposta a um poema de R. B. Côvo

de mortes premeditadas eu já morri tantas vezes,
mas a indesejada que me pegue sorrateiro
quando eu estiver bem velhinho de cueiros


*o poema de R. B. Côvo está aqui

sábado, 12 de fevereiro de 2011

492 - elegia para a senhora de delicado alfabeto

Da minha boca encarnei tuas rosas
Quando eras extenso leito de pétalas
E sopravam sem fim os teus anseios
E tu me derramavas em saliva e sal
Da minha boca encarnei tuas rosas
Para nunca mais desinventar o espanto

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

491 - Postimária

Se mal me ficas nas horas que vão a termo
Temo que se iluda a tua vista esquiva
Temo o assombro de tão vasto ermo
Temo a eloquencia sutil do erro
Temo a urgência da nossa incerteza

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

490 - poema para a senhora de delicado alfabeto

Permita-me ousar tuas singelezas
Navegar no contorno dessas letras
Abusar-te de futuros e promessas

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

489 - pequeno delito verbal

ela tirou meu poema da galeria
e abusa dele em suas pernas
meu poema adora aquele calor

a reiteração de fragrâncias
que mistura as calças e saias
meu poema se acha sílaba viva

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

488 - Canção quase invísivel

Há no dorso do poema o instante alado
Em que as sílabas se ruflam assustadas
Como a minuciosidade imprescindível
Do carinho no seio da mulher amada

Há no dorso do poema esta querencia
Que inflama o silencio da perenidade
Que clama na pele uma desorientação
E alimenta o itinerário de descobertas

Há no dorso do poema a breve invernia
Em que se recolhem as folhas do álamo
Palavras se revestem dum cinza intenso
E o horizonte se recobre em recomeços

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

487 - canto de travessia sob a tarde frágil

Eras tão casto meu sol pequenino
Que contigo inventava grandezas
Seguíamos sem curso ou rumo
Ao acaso das palavras mornas, tenras
Como as carnes imantadas de luz

domingo, 6 de fevereiro de 2011

486 - suíte para exposição de fotografias na chuva

não sei muito o que fazer diante das coisas
a não ser tomar-me de espanto
por isso permita-me beijar-te as mãos
e num gesto de genuflexão
oferecer meu olhos ao teu sacrifício
daqui por diante somente a ti
encarnarei as visagens do horizonte
e tu serás o espelho em todas auroras
as muitas faces dessa nuvem de desejo

sábado, 5 de fevereiro de 2011

485 - poema de supremo impulso

convivo com o espanto diário das auroras
e a sensação que breve tudo pode escurecer
basta o meneio impreciso,
a súbita palavra de revelação

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

484 - suíte para desespero e astenia

todos os dias deito com a agonia da tua ausência
é como se estivesses pronta para partir
e cada reencontro fosse a celebração do adeus
tu não pareces querer e teu corpo também não
mas um gesto se veste de profunda inquietação
e as coisas estão a rostir, imolar, sangrar

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

483 - solilóquio para pernas e contemplação

A bailarina executa o último ato
Enquanto observo a assistência:
No somente passo que ela dança
Olhos atônitos se curvam em laço

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

482 - sumário de extravio e fantasmagoria

desencaminhado no teu éden
sofro de vagar como rio perene
atiço águas que não encontram curso
a minha lavra é de singelo eufemismo

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

481 - rapsódia de pretenso porvir

no tardio do mês determino obrigações
admito as intolerâncias que regem o dia
preparo-me de alfazemas para as penas
prometo alívio as palavras sem mistérios
concluo a rapsódia com uma nota esquiva
persigno-me em nome do verbo que atrofia