sábado, 31 de dezembro de 2011

814 - concerto para o alfabeto de um ano próximo

faz pouco minha palavra
não dá conta das cercanias
não abraça nenhuma saudade
não transmuda água em vinho
não me diz que eu estou só

faz pouco minha palavra
e quase não interroga mais
a noite que desce sem pudor
breve vai levar minha alma
que acaricia o por do sol

faz pouco minha palavra
não atenua o gesto que faltou
não conduz o tempo que se gastou
breve vai levar o peito, meus olhos
nessa vereda que eu sempre cantei só

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

813 - canção de girassol enfeitiçado de luar

nem o acaso há de soprar-me de infinito
finda-se na palavra o sibilo da existência
nem muros brancos são refúgio do olhar
nem asas são pressupostos de elevação
todavia infla de ilusão o voo do vocábulo

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

812 - contraponto para inexistência, achados e afins VI

em sigilo faço vigília ao silencio
ele se atiça em meus ouvidos
e eu sou todo o assovio da brisa

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

811 - contraponto para inexistência, achados e afins V

faço festa com o alimento que me dás
és repasto alvoroçado no amanhecer
por ti cultivo guirlandas, astros, lábios
as minhas naus se inclinam em vagas
todo o horizonte clama por teus lilases

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

810 - canção de acalanto para floração incandescente

voe brasa e umedeça os meus lábios
pois me queima a sílaba da urgência

o afago desses crepúsculos sem sol
me põe em extravios a alma cansada

voe brasa e faça refrigério no silencio
que nunca mais te espero nas retinas

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

809 - variação com intermezzo para rubra urgência

ela se foi com a chuva que teima em não cessar
inundando este rio sem fronteiras
assim ela se foi:
como a correnteza sem horizontes
como este precipício incontinente
como a mágoa análoga de uma trovoada

domingo, 25 de dezembro de 2011

808 - variação com intermezzo para cortes dúbios

sinto-me lâmina na palavra punhal
dou-me lavra de fio no esmerilhar
e com esmero incito corte e risco
no gume que desliza sobre a folha

sinto-me lamina na palavra punhal
ao fazer geografia nos interstícios
que soletram substantivos de aço
na morada espessa de uma adaga

sábado, 24 de dezembro de 2011

807 - fantasia para oboé e girassóis em ascensão

tenho ainda os vestígios da crisálida
nesse emaranhado de chão
em que meus passos se debatem

são alados os rastros que desfiz
para que nas nuvens ligeiras
pudessem pousar os teus silêncios

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

806 - fantasia em cascata para a soberana dos sonhos

nestes teus pés habita a melancolia
que evoca a si mesma e não é triste
levita na embriaguez enlanguescida

eu que daqui te tenho contemplação
escrevo em bemol as tontas carícias
cuja leveza adorna o rito que excita

o ar que se respira é ouro, harmonia
como se fossemos eterna amálgama
na claridade reveladora das delícias

*inspirado em La chambre double
Charles Baudelaire (1821-1867)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

805 - metaplágio solícito para os quartetos de Elliot

na palavra está a sagração do tempo
crisálida transfigurada dum instante
sopro silente da infinda tempestade
que corrói os desvãos da linguagem

na palavra está a sagração do tempo
termo simultâneo, epílogo do agora
abismo que se concentra a implosão
corolário de repouso para o silencio

na palavra está a sagração do tempo
incrustando a dança dos significados
bússola para o oásis de todo deserto
como o pasto do súbito e do inefável


*inspirado em Four Quartets
Thomas Stearns Eliot (1888-1965)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

804 - madrigal de enlevo à senhora dos alísios

Eu já teria o corpo em cópula languescido
Sob a contemplação de vozes da natureza
“a poesia da terra jamais cessa”
E mesmo os pássaros enternecidos
Fizessem ruflar do peito sons em extravio
O agora seria o sempiterno de uma brisa
Que oscila quimeras em minha fronte
Eu já teria o corpo em cópula languescido

*inspirado em “On the grasshopper and cricket”
John Keats (1795–1821)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

803 - fuga em quatro vozes para clarinetes em desassossego

ouço da floresta o brilho do teu eco
“No bird soars too high,
if she soars with her own wings”
pois das asas não espero voo
são setas de agudos que se elevam
e o céu repercute em nuvem travessa

dos pés brotam o ímpeto dos sentidos
que alma absorve em barro tosco
na ramagem que desenha a estrada

até o galo precisa de outros cantos
para fazer o cortejo da alvorada
assim como o pássaro carrega
no peito a terna sede de assovios

pois da teia se consome a aranha,
a cobra em silente caminho
e o homem se consome de extravios


*inspirado em The Proverbs of Hell
William Blake (1757-1827)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

802 - fantasia tosca para clarins e acordes em oitavas

“Onde me deito há uma árvore”
E eu estou todo sonhos sob ela
Nada cresce sem a sílaba do sono

Não há estações de resguardo
Para a alma que paira alada
Sem as amarras de um clarão

O dia impõe suas tormentas
Imerso em tonto cansaço
O corpo se desvela na amplidão

Nada cresce sem a sílaba do sono
Mesmo quando me cai em fruto
A semente acalentada de um sonho


*inspirado em Der Tod
Heinrich Heine (1797-1856)

domingo, 18 de dezembro de 2011

801 - pequeno interlúdio para velas, impulso e sagração

Aguardo o chilreio da cotovia
“Hail to thee, blithe spirit!”
Como amantes que anseiam o rouxinol
Há cantos para o dia e lisonjas noturnas
“Bird thou never wert!”

Morrem os versos a cada estrofe
Como laminas silentes, diligentes
No ofício de exasperar desafios

Aguardo o chilreio da cotovia
Eu que nunca ansiei do pássaro o voo
Apenas o ímpeto de elevação das sílabas
“Hail to thee, blithe spirit!”

Toma-me de braços para o infinito
Todo o orbe conjuga árias e coplas
Serão teus os passos rasgando céus
“Bird thou never wert!”

Aguardo o chilreio da cotovia
Sopro de arrebatamento e impulso
Há um mar que não cessa nos olhos
Repara que os horizontes balouçam
Vaza-me de sal, nuvens e nuas naus

* inspirado em To a Skylark
Percy Bysshe Shelley (1792–1822)

sábado, 17 de dezembro de 2011

800 - contraponto para inexistência, achados e afins IV

o nosso caos, amor, é puro incenso
que propaga fumaça e cinzas

repercute nos espelhos embaçados
a vigília de tantos silêncios

os olhos ardem água e mágoa
e os medos florescem no jardim

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

799 - contraponto para inexistência, achados e afins III

há uma hora que não é o agora
em que tua ausência faz espasmos
as retinas recobrem-se de espanto

há um espaço de desatino na pele
de sacrifício de gestos
de imolar janelas que varam o sol

há uma hora que não é o agora
em que os passos explodem átomos
e tudo vira distancia para um sem fim

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

798 - contraponto para inexistência, achados e afins II

tomei o mar de braços para o nunca mais
nesta jornada de naus a soçobrar
as inquisições da tempestade já se vão
agora é o infindo de um vento que me eleva

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

797 - contraponto para inexistência, achados e afins

tomei de incumbência a lavra de algumas palavras
de dar-lhes lustro como a uma lamina de punhal
neste ofício de limar as arestas do imponderável

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

796 - antipoema para ardor na seara da caatinga

a coisa que mais campeia no sertão
é o levante das folhas em ebulição
queimam retinas no refrigério da água
aqui se contam os pássaros que imolam
quando plainam em voo solitário pelo céu
mesmo os peixes nadam de soslaio
temendo feixes de luz que os atravessam
nada é mais solitário que o sol do meio-dia

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

795 - poema das graças para as palavras que se elevam

ao brusco,
há o tosco,
ao imperfeito,
há o súbito,
ao espanto,
há o repentino,
ao inominado
há o silente,
ao gauche,
há o desmesurado,
ao incontido,
há o inacabado...

domingo, 11 de dezembro de 2011

794 - canção para gioconda assentada no arrebol

nem toda a minha sinceridade
seria capaz de arrancar
de ti este ar de interrogação

que destilas feito monalisa
pousada na aba deste pôr-do-sol

sábado, 10 de dezembro de 2011

793 - canto de persistência para o último fio de ariadne

trago-te, senhora, os olhos em tempestade
no semblante que o tempo come arduamente
meus vestígios são os girassóis no entardecer

por ti roguei cirandas em noites de sofreguidão
varei silêncio como um punhal me atravessando
meus caminhos são bússolas em desassossego

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

792 - quando a luz se desloca na velocidade da ausência

eu me havia mudo para ti
enroscado no silencio do olhar
tu me ias de folguedo e alegria
e os passos eram só distancias
um ruminar cheio de ausência

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

791 - ciranda de alvoroço em prece enluarada

há um silencio que se dobra sobre a tua pele
incita mares, presságios, ventanias
recorda ancestrais paragens

há um silencio que se desdobra em desalinho
faz miragem no deserto de todos os oásis
e inflama os horizontes de letargia

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

790 - ciranda para argonauta em feitiço de sereia

como num carinho que nunca houvesse
contorna-me a fronte esta nau arrebatada
içam-me as velas deste livro o frontispício

das horas que velejo a ti assomam lentas
dos horizontes que não te cabem o mirar
soçobro nos degraus de tamanha mesura

como num vasto oceano para galgar delírio
açoitam-me as encostas em tonto vaticínio
dá-me a senha para ungir o santo sacrifício

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

789 - imersão em rapto de som (gavotta con due variazioni)

lampejam arpejos lamparinas
no brilho que beija a bailarina
estranho, estrado, stravinski

sherzino, tarantella, andantino
misturam-se maestrias divinas
o tempo, o passo, a concertina

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

788 - ciranda para longínqua marcha de heliantos

para os longínquos caminhos não tenho asas
mas os pés incitam o corpo para a levitação
compartilho o sentido de elevação das aves
faço do canto o pastoreio das nuvens

e quando me cansam esses ares de poeira
deposito as incoerências nos galhos altos
assim me livro dos escombros do dia-a-dia
faço dos campanários meus precipícios

para os longínquos caminhos não tenho asas
mas os pés incitam os olhos a contemplação
compartilho o naufrágio distraído da manhã
faço dos heliantos a rota cega do entardecer

domingo, 4 de dezembro de 2011

787 - crônica para um menestrel de coração numeroso

p/ roberto lima

aqui na minha terra a gente intui as conversas
com preâmbulos de meteorologia
olhando para as nuvens postas no horizonte
como se as águas benfazejas fossem o princípio
de todos os alumbramentos do sertão
e se das palavras saltam incensos de elevação
olhos carismáticos preparam a artimanha do voo
é desse adubo de camaradagem
que a prosa se acomoda em afeto e abraço
alternando longos dias com noites intermináveis
pois assim de espanto em espanto
corre o sangue dos fraternos caminhos

sábado, 3 de dezembro de 2011

786 - ciranda para outra dose de amores cáusticos

de ti exoro a ânsia de pasto
na saliência da geografia
que se insinua em tua pele

enquanto brincas distraída
com as cores do arrebol
atiçando augúrio na saliva

meus passos são escombro
caminho raso de saciedade
infortúnio que não tem epíteto

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

785 - ciranda para um girassol em dezembro

dezembro não tem cor
é ensandecido de verão
o sol obnubila os olhares
há um turbilhão de luz
comendo a paisagem

mesmo quando as águas
se encontram em choque
o mar se desfaz em vagas
o olho remói um pretérito
sereias cantam alvíssaras

dezembro não tem cor
como o corpo em letargia
aguarda afago da ventania
dezembro não tem cor
mas me ocorre um arco-íris

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

784 - a poesia é o silencio engravidando sílabas V

guardo de ti uma ausência sem alvoroço
uns rabiscos no caderno de anotações
páginas marcadas de pessoa e bandeira
altercações de lilases, supercílios, lábios
o teu ventre que germina alumbramentos
e esta atônita ciranda que pulsa sem fim