sexta-feira, 30 de abril de 2010

200 - madrigal em outra versão


vou desenhar eternidades em paisagens e lábios
e rabiscar de silêncio palavras santas e puras
para que venham jantar meus olhos tuas fantasias

quinta-feira, 29 de abril de 2010

199 - modinha prá viola e rede

quando eu me inspirar poesia
seja manhã ou tardezinha
numa rede soprada de maresia
quero me embalar de preces
da menina que couro e curte
encantos em bemóis e fitas
e tranças nos olhos de sede

quero somente o terno doce
das pálpebras das tuas saias



*Lara Amaral no Teatro da Vida fez versos em diálogo e homenagem. Confiram.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

198 - sermão apócrifo

quem proverá
a água que a esta sede não cura
quem proverá
o vento que a esta onda não cala
quem proverá
o fogo que a esta paz não dura
quem proverá
a terra que a esta mão não funda
quem proverá
o consolo que a esta ode não cria

terça-feira, 27 de abril de 2010

197 - aos pés da montanha

para que não me escape
da mão a semelhança
removo a saliva do dente
faço oferenda de lábios
permito a seiva do caos

deixo que o rubro da pele
se instale nos sentidos
e todos os meus órgãos
pulsem em sincronia neste
céu de bem-aventurança

segunda-feira, 26 de abril de 2010

196 - poeminha de sanhaço sem ninho


em caminho e fuga
construo-me em setas
acentuo diferenças
realço disparidades

tenho apenas os olhos
a me guiarem em travessia
mas teu coração é meu norte

domingo, 25 de abril de 2010

195 - Cine Íris


Na matinée de domingo
A invencionice da trama
Conspirava aconchego
Pipocavam inocências
De mãos e olhares

sábado, 24 de abril de 2010

194 - Cine Timbira

chove um dia inteiro
quando me encontro
em teu retrato

pouco há na imagem
desfigurada, mas
a saudade vira cinema

sexta-feira, 23 de abril de 2010

193 - malmequeres


não quero flores no meu celeiro
contento-me com a vista
da natureza morta de van gogh

quinta-feira, 22 de abril de 2010

192 - Ceci n'est pas une poème


o corpo enlanguescido
esquece
o líquido soprado na veia

quarta-feira, 21 de abril de 2010

191 - Uma outra ode

Ela trouxe o crepúsculo
Como cântico e castigo

Fez romaria e doce cio
Na réstia de tecido frágil

Eu construí esta quimera
Como castelo distraído
Até o coração desvanecer

terça-feira, 20 de abril de 2010

190 - Já não me cabe a moldura

essa sensação me é antiga
e ficou mais viva
a vez primeira que vi Goya
não ele mas a maja desnuda
naquela mudez iridescente

segunda-feira, 19 de abril de 2010

189 - A idade da pele (revisitação)

Teremos bastantes palavras
Afiadas e sutis como lâminas
E com elas iremos nos cortar
De todas as formas possíveis

Sobre nossos corpos estarão
Essas marcas mais visíveis
Serão nosso orgulho de união
Nosso motivo de maior amor

E quando alguém tomar posse
A nos falar em dessemelhança
Teremos estas peles de abrigo
Já teremos um destino escrito

domingo, 18 de abril de 2010

188 - Trova brusca em semínima

Inquieta-me um desejo de nuvem
flor que pasce inquieta no murmúrio
poesia etérea no mundo sem palavra

inquieta-me a solução sem abismo
desta tarde que foge como uma ode
deste frêmito que te quero ofertar

inquieta-me o presságio, a fantasia
o longo gesto que espera respostas
inquieta-me o arrepio e este recato

sábado, 17 de abril de 2010

187 - Uma ode a Ricardo Reis


Coroai-me, em verdade, de silêncios
E horas breves como essas
Em que, plantado de anseio,
Finco-me a ver o riso que
Escorre em tua face
E ofereces aos passantes distraídos

sexta-feira, 16 de abril de 2010

186 - Canção da próxima esquina

Que não finjas a dor
nesta espera infinda
- Você não romperia

A corrente de ferro
Os nós, laços, a teia
- Você não romperia

O peito em confusão
O coração cansado
- Você não romperia

A mão que te acena
Em gesto derradeiro
- Você não romperia

A letargia do projétil
A máquina do tempo
- Você não romperia

O nada, o abismo, o
Mergulho, o vácuo,
- Você não romperia

(Inelutável e só)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

185 - Afio na pedra a lâmina do verso


A faca meio torta recortou-me a face
Fez a cicatriz que carrego na palavra

quarta-feira, 14 de abril de 2010

184 - fadinho de pouca monta

vivo de campear palavras
de dar-lhes cerco e estacas
de nomear o que não cabe
de por os selos e metáforas

cumpro carpir o duro ofício
sem refúgio as intempéries
e o destino, de mãos ao vento
sem perder lume no vôo cego

terça-feira, 13 de abril de 2010

183 - houvesse mais som eu ouviria


você não viajou no laço da canção
era Carmina Burana
mas podia ser Bach
no piano de Glenn Gould
ficamos tão sozinhos no primeiro ato

segunda-feira, 12 de abril de 2010

domingo, 11 de abril de 2010

181 - Pequena ode para meu filho

Pode passar o tempo
- Não entristeço não -
Eu olho os teus olhos
E num átimo ganho
Mais uma mocidade

sábado, 10 de abril de 2010

180 - A idade da pele

De verdade queria
Saber usar as medidas
A certeza de frio e calor
Quando a idade da pele
For ficando mais velha
E os sulcos confundirem-se
Em sabores e sensações
E de imediato não possa
Haver qualquer constatação

De verdade queria
Também saber ousar
E poder sentir frio e calor
Quando a idade da pele
For ficando mais séria
E os sulcos serenando
E de imediato não possa
Me permitir ao martírio
De saborear a vida como
O mercúrio em expansão

sexta-feira, 9 de abril de 2010

179 - poema de outono

a chuva varreu a saudade que eu me tinha
limou as arestas deste coração tão cansado
a chuva fez do meu olho poço sem lágrima
assentou no rosto a marca daquele gesto
a chuva apascentou desejos que ainda ardem
deu ordem ao dia, a noite, a terna madrugada
a chuva me fez cavalgar o infinito do alfabeto
para encontrar o verbo amargo desta renúncia

quinta-feira, 8 de abril de 2010

178 - canção de gesta

Empunho girassóis e alamares
Na rede de tramas que puseste
Entre as promessas a cumprir
Em tantos véus por alimentar

Herdei tronos e tenros pomares
vivos e mortos em tantos lugares
fantasmas que me inquietam e
tangem meus cavalos na solidão

preciso empenhar-me na labuta
abater montes de aveia e feno
dar sorriso aos entes diferentes
acoitar-me com as parcas feras

peleja que não ouso a soçobrar
se num átimo me saltam dentes

quarta-feira, 7 de abril de 2010

177 - poema de maior encanto

enviesado olho as vidraças orvalhadas
são lentas no outono as manhãs
são feitos de preguiça os gestos
o silêncio conspira indulgencia e
a tenra sede do corpo evoca cortejo
saliva na pele martírios da madrugada
não há como não se entregar aos eflúvios
e lançar mãos e naus em eterna viagem

terça-feira, 6 de abril de 2010

176 - Variações sobre Pasárgada


Deito-me à espera de oferendas
Aqui sou amigo de reis e rainhas
Tenho o quero-quero e o bentivi
Chove na minha horta e no jardim

A mulher do sonho é carne e jasmim
Há cascatas de leite no vão das águas
Há dicionários de várias línguas, do
aramaico ao latim, e ninfas sossegadas
soletram ao ouvido as letras para mim

segunda-feira, 5 de abril de 2010

175 - Mais uma balada de tanto porvir

Tentei inventos com a reminiscência
Daqueles dias que caminhei sem direção
Das intempéries que meus olhos calaram
Nada restou além dessa mancha que sangra
E que desatinado tento inutilmente sufocar

domingo, 4 de abril de 2010

174 - uma canção

celeiro de dúvidas
contemplo as alegorias
do vento

nada mais preciso e
desdenho do teu olhar

sábado, 3 de abril de 2010

173 - Poema assustado

acordei tão feliz hoje que
fiquei com medo de sorrir

sexta-feira, 2 de abril de 2010

172 - Outro poema de muito cansaço

Sou fugitivo de tantos lugares
De tanto ir e vir desatinado
De tanto sacolejo de estrada
De tantos pratos emudecidos
De tantas bocas a se esganar
De tantos olhos tão famintos
De tantos corpos apodrecidos
De tanta falta e ausência cometidos
De tantas palavras por singrar

quinta-feira, 1 de abril de 2010

171 - Primeira cantata em dois sóis

Tu me quiseste como poema sem asa
- Entornaste o dia em madrugada -
Para que eu me doasse sem assombro
E me tomaste os olhos de súbito assalto
Até este rosto nítido pairar na escuridão