quinta-feira, 31 de março de 2011

539 - sobre o ofício de volumes e fardos


Não me basto de infinitos
A velar essa gota que perdura
A inundar de mágoa o oceano
Contenta-me a brisa benfazeja
Que me sopram uns alísios
A eternidade não deve caber
No alforje deste azêmola

quarta-feira, 30 de março de 2011

538 - sobre o ofício de soletrar ausencias

Não, não me tome de atrevimento
Se te insinuo laços nestes lassos versos
É que me vazou de tantas querencias
A lasciva ubiquidade do teu andar
Que sigo em torno de um desespero

terça-feira, 29 de março de 2011

537 - sobre o ofício das madrugadas de ócio

às vezes me pego com a sensação
de vazio tão imensa que não há ar
que me preencha de pulmões

segunda-feira, 28 de março de 2011

536 - sobre o ofício do discurso vão

o que outrora vinha não era poesia
apenas ação de fragmentos desarvorados
agora ouso a ambígua forma da escrita
como acorde solitário no meio da sinfonia
- tico-tico no fubá ou bem-te-vi que tudo via

domingo, 27 de março de 2011

535 - sobre o ofício de cortejar espantos

não significo muito pra mim
cérebro em desconcerto reto
casulo liberto de tuas cascas
espora de avessos e asas
amaciar pétalas: dou-me a lavra

sábado, 26 de março de 2011

534 - Compêndio para cacto, sertão e beira-mar


no lamento clemente de ladainhas
ecoa em contrários a natureza da memória
mas sei que não só o avesso dos fonemas 
se percebe, há um alfabeto de candura,
ornado de reminiscência 
que faz estrada e corta o coração, 
 lateja em ais a madrugada ubíqua
em que se foram os repentes de Conselheiro,
mais duas dobras na curva do rio
e a noite encobre tudo de sem fim

sexta-feira, 25 de março de 2011

533 - Compêndio para o desatino do teu olhar II

Eu só não te fui por querer
Porque tu não me foste
Porque me ias sem graça
E eu só te fiquei lembrança

quinta-feira, 24 de março de 2011

532 - Compêndio para o desatino do teu olhar


É um pouco que perdura
É um raso que naufraga
É pouso mas desabriga

quarta-feira, 23 de março de 2011

531 - Compendio para o desmanche do mar II

Eu vos saúdo, imorredoura sonolencia das horas
Sobre ti acumulo o fardo de redes em tempestade
Sobre ti lanço armadilhas para colheita dos ventos
Os peixes já não habitam esta sala onde adormeço

Eu vos saúdo pois a ti devoto este ócio de maresia
Esta incessante navalha que corta feito leme torto
Que singra as vagas em busca de oferenda do céu
Eu vos saúdo pois a tudo acolho neste abraço ateu

Eu vos saúdo, imorredoura sonolencia das horas
Já desenhei nesta tarde os epitáfios dos girassóis
Os moinhos gemem com as águas que se acoitam
Aqui balouça o coração, rasga-me o peito e extirpa

terça-feira, 22 de março de 2011

530 - Compêndio para o coito das libélulas

Eram tão febris as alças do teu voo
Grunhiam ais as foices do espasmo
No desalinho aquático deste dilúvio

segunda-feira, 21 de março de 2011

529 - Compêndio para o desmanche do mar

Eram rubras rútilas as intermitências da nau
Que a logro sucumbiam infantes em calmaria
Para o nunca mais do horizonte que se abria

Forjadas as viajantes amarras de tantos nós
As torpes garras abocanhavam os incrédulos
E dentro de seus vazios inculcavam digestão

Sem rei, nem lei fez-se implosão e escarcéu
Sem ditame para as lágrimas de tanto pranto
Sem verso que coubesse a trama do acalanto

domingo, 20 de março de 2011

528 - Haikai flutuante


cantos castos
alvos, ave
castro alves

sábado, 19 de março de 2011

527 - Sumário para o retiro das sombras

Medra a palavra em tua boca
Medra segredo e interjeição
Pois o que não disseste flutua
Dissonante entre lábios e saliva
Inaudito no sem fim do silencio

sexta-feira, 18 de março de 2011

526 - série sem título para a eternidade

portal de cobre és minha morte
não quero a fria lápide onde jaz
quero dança de corpos samba
e alvíssaras à beira túmulo
para quando a noite vier infinda
cobrir minha castidade de poeta

quinta-feira, 17 de março de 2011

525 - sonata no deserto de apreço e comiseração

Os teus móveis me fitam estáticos
Eles já foram movimento e agonia
Sorriam-se entre um passar e outro
Eram cúmplices das nossas orgias
Entre o sofá e tua espreguiçadeira
Corre-me o vazio de mesa e cadeira
Tudo dorme neste silencio de abajur

quarta-feira, 16 de março de 2011

524 - rapsódia enquanto o trem não para na estação


eu nunca
passeei na praça onze
mas guardo
vestígios de suposta estada
meu coração farfalha
e brame toda vez
que toca o samba canção
a rogar vossos pandeiros
meus pés falham
naquele chão improvável
de ser pisado

terça-feira, 15 de março de 2011

523 - ensaio neoconcreto para a gramática da clausura

de quem me lê para ti estou mudo
não ao mundo imundo de Raimundo
que seria rima se assim preciso fosse
mas quero mais: desenhos obsoletos
cores fugidias, algozes de passagem
livro verdejante, paisagem de corrimão
pois para o tudo se ler há fome de olhar
a pia de Maria, o barro de José, o fado
essa coisa que nasceu escrita no corpo
e que incendeia de pretéritos a caligrafia

segunda-feira, 14 de março de 2011

522 - ensaio neoconcreto para umbrais e vazantes

Músculo vazio eu te absorvo
Só assim me sacio de alísios
Deliro até me acostumar com
O trigo absorto em tua orelha

Eu que vinha de tantos reinos
Agora pasto mineral me restou
Debruço-me nestes escalíneos
Palavra que incito já a se criar

Por isso dou forma aos retardos
Aguardo sobrancelhas de cerca
Acerco-me em britas e esperas
Esqueço-me à sombra do beiral

*No dia nacional da poesia ganhei presente aqui do Eu lírico

domingo, 13 de março de 2011

521 - ensaio neoconcreto para granizo e solidão

Vou cantar-lhe as britas do alvorecer
Que breve serão atiradas ao lago
Para que ao contato mágico da água
Voem sólidas em tríade caminho

Há muito que me convém o compasso
Que principia a coreografia dos corais
A ferro e fogo fátuo tatuados no corpo
mão que ilude a resina em teu mármore

O itinerário verga lento vento e agonia
Recobre miragem de pedra a espreitar
Tão duro consome o dia que me deste
Árduo fardo dessa escrita que não leste

sábado, 12 de março de 2011

520 - ensaio neoconcreto para sólidos e obtusos

gerânios geravam uma gramática de clausura
aturdidos os répteis eram cataclismos sonoros
na ordem geral das reticencias pairavam éolos

somente a pedra inspirava o sopro do pintassilgo
apenas a pedra resistia ao marulho do vocábulo
só a pedra resignada oferecia leito à correnteza

sexta-feira, 11 de março de 2011

519 - ensaio neoconcreto para cristais e aleivosia

cresce nos encamentos a angústia da aurora
a hora de todas as pias abundantes
de barbas e espelhos, de gengivas e dentes
no reparo irreparável de mãos a esfregar

cresce nos encamentos a angústia de água
que vai se misturar ao caos urbano humano
a esconder da vista vísceras e perdulários
e saciar a sede de limpeza dos enamorados

cresce nos encamentos a angústia insidiosa
para a qual corre o dia em valas e esgotos
e as carnes apodrecem sem cheiro e sabor
e os olhos se apetecem úmidos de um sopro

quinta-feira, 10 de março de 2011

518 - ensaio neoconcreto para dentes e ardósia

ouso um formalismo hercúleo, testudo
sem obsecrações, sem súplicas
a palavra que a si mesmo se baste
e debalde desbaste o laudável

quarta-feira, 9 de março de 2011

517 - balada andarilha

ficou curto o passo de tanto andar
ficou pouco meu peito de só arder

terça-feira, 8 de março de 2011

516 - posto que me foi dado escolher ontem

posto se me fosse dado escolher hoje
ficaria com as tuas mãos para sempre
dentro das minhas ou amassando-me
a nuca, o peito ou fazendo-me desejo

posto se me fosse dado escolher hoje
ficaria paralisado naquela esquina sem
nunca dizer adeus com as malas altas
e o coração de eterna criança te daria

posto se me fosse dado escolher hoje
ficaria inteiro para dentro de nós dois
seria teu mais que perfeito cozinheiro
te faria conceber cheiros requintados

posto se me fosse dado escolher hoje
ficaria afogado no largo do teu vestido
não estaria naquela posição de janela
afastando-me em silenciosa angústia

segunda-feira, 7 de março de 2011

515 - para uma ciranda na terra do nunca mais

era uma vez enquanto lias distraída
e pausavas a sombra pousada na guarida
e rebentavam flores no largo e longo horizonte
e havia um bocejo de ais nos meus olhares
e tudo eras a paisagem de uma vez

domingo, 6 de março de 2011

514 - Ensaio vesano para o itinerário do vento

Estou hoje obtuso como rio sem margem
Desorientado no seu leito vagar
Apoiado apenas no singelo horizonte
No traço tênue, quase invisível
Onde se perdem os lírios enamorados
Estou hoje decididamente vadio de vazios
E o que corre no meu corpo não é sangue
Há somente ar inflando-me como solidão

sábado, 5 de março de 2011

513 - outra canção de rogo à senhora dos vazios

em matéria de amor sou quase cego
vagueio tateando um sopro
aquele que no ouvido me encantaste
e despertou um redemoinho de sílabas
todas vívidas, ansiosas de caligrafia

sexta-feira, 4 de março de 2011

512 - Canção de mais bem querer para mainha

Mamãe me abria os olhos toda manhã
Dizia que eu precisava ter estilo
Saber me comportar consoante a regra
Por isso quando escrevo é só rabisco
É que mamãe me punha cisma e cisco

quinta-feira, 3 de março de 2011

511 - poema com feitio de cavidades

havia um rio, tão frio
que me fazia navegar
por entre as algas

havia um rio, vazio
que fazia água
por entre olhares

havia somente o rio
semente de umidade
serpente da saudade

quarta-feira, 2 de março de 2011

510 - Loa de umbral enternecido na aurora

Principio com artes de aluvião
Recolhendo o barro nas retinas
Folgando algazarra de passarinho
Lambuzando de riso jogos florais

Principio arremedos de lagartos
Escárnio de peixe nos alagados
Mão de cedro fuçando paisagem
Imorredoura cotovia em rodopios

Principio atiçando lesma no jirau
Convocando o repúdio de redes
Alisando voz no olor da cascata
Retiro manso no casulo do verso

terça-feira, 1 de março de 2011

509 - Antiga cantiga de ninar meus olhares

Não temo mais o azul que tu me deste
O fio tenue de amor era vidro e me cortou
Ficaram as cirandas na borda da tua saia
O anel que do dedo não saía
Até se cumprirem ciclos de nostalgia
E eu matar o espelho, a vontade, a saudade