sexta-feira, 30 de setembro de 2011

722 - dicionário mínimo para entornar alvoroços

I
o princípio do dia
se edifica na antemanhã
quando os olhos
se descobrem em amanhecimento

há um tardio de ignorância
nas palavras de acontecer
por isso os peixes nadam em silencio
e a aurora é a circunstância da véspera

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

721 - cantiga para estrada do nunca mais

oh meu azul de ontem e sempre
minha lágrima quase seca
oh meu embornal de retirante
meu ser insistente de louco pária

são ainda os pés que me conduzem
são de girassóis as minhas estrelas

oh meu azul de ontem e sempre
minha conserva de carne seca
oh meu jaleco de couro arrancado
minhas ranhuras na sola da alma

são dos espinhos que foge a falange
são de nós a dor, o travo, o engasgo

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

720 - poema de acalanto para a dona dos lilases

arquiteto de ofício inacabado
inventario na pele intempéries
sou refém da dona dos lilases

como a pedra em construção
espero nuvens para me fixar
neste sólido que desmancha

arquiteto de ofício inacabado
cultivo a altivez das pétalas
neste salto sem paraquedas

sou refém da dona dos lilases
dos intermináveis horizontes
do silencio que jaz o desatino

terça-feira, 27 de setembro de 2011

719 - para quando eu acordar com o vento nos lábios

eu sempre quis oferecer uma paisagem de regato
como naquelas telas de Monet
com as cores mais dissonantes de nenúfares

tu serias a favorita da ponte a lançar-me
dúvidas arquejantes no horizonte
a por cabelos alvoraçados e grisalhos

eu ficaria com a incumbência de te louvar
mesmo quando afastasses esses lábios
e teus sorrisos me fizessem desatino

tu serias nuvem no inquietante caminho
floração de múltiplos quereres
o clarim da alvorada, o despertar da ventania

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

718 - não são os poemas que nos propõem vastidão

repara que na asa do anjo há lentidão
repara que no voo há mais horizonte
repara que no movimento há impulso
repara que o olho é vitima da atenção

repara que a acidez conduz a língua
repara que o norte é sempre direção
repara que o lagarto conduz silencio
repara que no deserto areia mingua

repara que pássaros respiram canto
repara que o desatino tem voz altiva
repara que o espanto liberta o súbito
repara que mote necessita arremate

domingo, 25 de setembro de 2011

717 - outro canto de ofício para vazante de lua

não há rio maior que a minha mágoa
tão indevassável
como a solidão dos montes altos

mesmo quando a lua se derrama
mesmo quando incidem nuvens
mesmo quando

não há rio maior que a minha mágoa
tão incomensurável
como aquela areia
que escolhi para este deserto

sábado, 24 de setembro de 2011

716 - canto de ofício para vazante de lua

plantei aridez, vertigem
neste mar
onde desassossego
e velas me entorpecem
em busca de direção

o meu mar que medra
entre os dedos da mão
que ensandece

tempo crespo entre unhas
no apego, no apelo
na fina lamina d’água

árida como areia e vento
de tão profundo pesar
que acontece nos olhos

lágrima seca, extravio
o que não cabe, o sombrio
mas afoga a vida movediça

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

715 - canção para janis aparecer na janela do sétimo andar

ela me apareceu na sacada como uma pop star
em meio a tantos reluzentes passos
eu a observava vergado por recordações
na distancia insegura de dois corações

nunca nada fôramos
embora houvesse a cumplicidade da pele
nunca nada seríamos
estava no descaminho dos destinos

ela sempre me aparecia bonequinha
flertando com o pôr-do-sol
pondo levitações nos lábios
ansiando por muitos amanhãs

nada havia embora eu fosse
e tudo me trazia a voz em tragadas
madrugadas e blues
na praia de pés descalços

bye, bye, baby, bye, bye

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

714 - Canção para contradança e obnubilação

Teus olhos me inventam carinhos novos
Recobrem a placidez das alvoradas
Fazem ninho no alvoroço das palavras

Com eles envolvo desertos de candura
Navego mares em incessante busca
Esmiúço o silencio que se descortina

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

713 - antipoema para sertão, denodo e afinco

dou-me fé de palavra, dou-me batismo
todos os dias perambulo desconcertado
para florir na concretude de caracteres
só assim me vazam esses horizontes
só assim espinhos me dão existência

dou-me fé de palavra, dou-me batismo
o barro da ribeira, a moita, o burburinho
me escapam silentes versos em lagarto
assim me chegam inverno e trovoadas
assim me deliram os olhos embaçados

terça-feira, 20 de setembro de 2011

712 - antipoema para sertão, fuga e arrebol

é do visgo saliente das manhãs
que se tece o quebradiço do olhar
venta calmaria no aroma da romã
como o corpo se achasse em sumo
e provocasse inundação nos lábios

vegetam na campina ervas daninhas
são delas o travo dos passos na vereda
enquanto em folguedo os bem-te-vis
pastoreiam o desjejum dos rebanhos

o mundo acontece em um pestanejar
eu me descortino escorado na janela
com a roupa do passado desabotoada
não me lembro se antes havia horizonte
mas deixo-me perder só e ensimesmado

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

711 - antipoema para sertão, caboclinho e olhos d’água

a asa do pássaro não incita mistério
é do bico saliente que se intui enigmas
o voo é só a elevação do canto
quando atinge aquelas oitavas
que corrompe as claves em dor e sol
e o mundo inteiro faz arrulho
na inundação de um desconcerto

domingo, 18 de setembro de 2011

710 - Antipoema para sertão, juritis e mandacarus

É de sertão este mar morto que me atinge
No árido movimento dos lagartos
Que deslizam ensimesmados na caatinga
Aqui e ali florescem cactos, mandacarus
Pregam-nos espinhos nas retinas

Acometem-se oásis nos passos das veredas
Pois é do destino ansioso a sombra da rede
Nas asas do pássaro ruflam-se poeira e canto
A lamina de água corta o peixe na raiz
Os meus olhos ensandecem de calor e calmaria

sábado, 17 de setembro de 2011

709 - primeiro estágio para vivência de uns resguardos

a moça tinha pele de nuvem
não,
acho que a moça
era uma nuvem própria
sabe aquelas coisas que flutuam
e não importa se estejam no céu

pois carregam o princípio da elevação
parece que ao comando de sinais
a sina de pedra camufla algodão

a moça tinha pele de nuvem
não,
quando a toquei ela era nuvem
absolutamente dissoluta
a se deixar escorrer pelas mãos

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

708 - antipoema para uma lâmina na jugular

quando a solidão dos meus olhos invadir a cidade
estarão atentos os semáforos, sinais e out-doors
a magricela se oferecerá para repasto rápido
nos jornais estarão os incêndios das insanidades
mortes, acidentes, roubos, falcatruas, corrupção

o sol será só mais um incidente sobre minha pele
como este pretérito que despejo em tragadas
até as borboletas se refugiarão em seus casulos
eletrificadas as nuvens explodirão em espanto
nada ficará imune ao contato das têmporas

quando a solidão dos meus olhos invadir a cidade
haverá uma platéia atenta para o coito das libélulas
os girassóis hão de se rasgar no horizonte sépia
anunciarão o desassossego de rio afogando no mar
os astros desavisados estarão no orbe em frio silencio

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

707 - repente de aproximação para coisas tão desiguais

há coisas que libertam
como o cortejo de borboletas no cio
ou o espraiar dos olhos na madrugada
há outras coisas para libertar
como aquele beijo perdido na esquina
ou aquela correntinha de ouro
esquecida no pescoço
há também coisas de liberto
como a saúva que mordiscava beijo
ou a víbora que ensandecia nas pernas
há todavia coisas de liberdade
como as palavras fecundadas na alvorada
ou os versos que contaminam girassóis
há – não sei como dizer – a própria liberdade
que não cabe em nenhuma metáfora

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

706 - outro repente arisco para nomeada de pontos cardeais

quisera eu o singelo da nuvem apascentada
o teu olhar de flor prestes a sair do cativeiro
a pátina suave dos teus dentes em minha pele
o teu aroma de cereja que vem das cavidades

quisera eu carícia mais terna dos teus braços
o envolver-se de mistérios que assoma lábios
quando a estrada se faz no visgo dos desejos
quando o recato ensandece de luz teus poros

quisera eu tanta luta nesta peleja de elevação
os teus sentidos a impor os pontos cardeais
imperando com um norte para lúdica jornada
quisera eu ser forte como leste que me deste

terça-feira, 13 de setembro de 2011

705 - poema sem intenção nenhuma de acontecer

outro dia assisti um filme
em que bandeira aparece
fazendo café
bandeira de pijama

depois olha pela janela
vê a rua
já de paletó passeia
com aquele riso de pasárgada
cumprimentando as pessoas

bandeira na lida escrevendo
um poema
que não me foi possível ler
na velha máquina de datilografia
bandeira solitário entre os versos

depois que o filme acabou
pensei como seria bandeira
chegando ao céu
com aquele cortejo de anjos
em alumbramento

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

704 - metaplagio quase lúdico de bandeira para ninar

ela me fazia de silencio
para encantar-se
era tão doce olhar-nos
numa carícia tão distante
alumbrava-me de infância
como um porquinho da índia

domingo, 11 de setembro de 2011

703 - canção de bem querer para doce precipício

o lábio dela é brisa
sincero assovio
pluma
nunca dá vontade
de sossegar
o cheiro, a saliva

o lábio dela é brisa
pouso macio
recosto de nuvem
fonte
que nunca sacia

sábado, 10 de setembro de 2011

702 - variações para um poema de guerra e paz

quando falam em guerra
eu lembro de duas bombas
que explodiram dentro de mim
kamikase que sou
em hiroshima e nagasaki
era assim em átomos
vagas que queimam
ainda na solidão dos dias
quando falam em guerra
eu lembro de duas bombas
- duas torres, uma babel -
que não cansam de mutilar
(a paz)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

701 - repente arisco para nomeada de pontos cardeais

o teu corpo inteiro
é descaminho
fado de madrugadas
inconstantes
pétrea carícia,
rubro desassossego
solidão em pares
intumescidos
crescente alvoroço
para as retinas
o teu corpo inteiro
me descaminha
deixa-me silente
em alumbramentos
nada contenta
o rebuliço da alvorada
nenhuma palavra salva
o naufrágio dos teus lábios

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

700 - repente para nomeada de gravatás na trovoada

encilho o pretérito na dobra da vereda
atravesso de espinho a espinho
dou-me lamina de pele para cortá-los
e se me sangro mais
nem a palavra há de estancar

recolho as visagens de tantos preás
de tocaia para parco passarinho
dobram-se as asas, não o canto
vergam os olhos na altiva alvorada

o menino ficou na rede da varanda
alvoroçado de alumbramentos
com água nos olhos de inundação
e as mãos sedentas de te possuir

encilho o pretérito na dobra da vereda
atravesso de espinho a espinho
dou-me flagelo de exasperar
no passo mais mineral do descaminho
não há palavra que me salve da ruína

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

699 - repente desavisado para exaurir canto de sereia

tu me deste esta sina de silencio
de carpir fugas e intempéries
recortaste a face de pretéritos
com esses lábios que invocam
o tumulto de muitos assombros

és-me ilha em meio ao temporal
e não tenho porto para ancorar
um vento ruge de popa a proa
enquanto no horizonte sedoso
acalentas velas em rito de prece


* O Wilson Nanini me plantou este oásis aqui

terça-feira, 6 de setembro de 2011

698 - para uma geografia de asas cortadas

p/ Wilson Nanini


meu tumulto é a palavra
descortino alvoradas
com ela dou-me vícios
repito até a exaustão
corruíras e girassóis
jasmins e sempre-vivas
com ela alço esse ímpeto
de arcanjo sem asas
vislumbro sol e arrebol
tenho mares e alamares
feitiço de todos os santos

meu tumulto é a palavra
em raízes e predicados
silêncios e alvoroços
na mais funda evocação
com ela dou-me instintos
pelejo lamina e punhal
lido com reinos, donzelas
reordeno o mineral, vegetal
faço trovejar na caatinga
vazo leito, ribeiro e córrego
alço de ímpetos o vocábulo

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

697 - repente para colorir o aprendizado das fadas

queria cobrir de espantos
o inesperado da tua astúcia
esse ruflar de mãos
esse alvoroço de membros
mas só tenho asas em fuga
um desatino de canto
nem os córregos florescem
no naufrágio deste olhar

domingo, 4 de setembro de 2011

696 - sonata de ausência para girassol, trevo e fogo-fátuo

já não tenho mais silêncios que possam te caber
desfolhei folha por folha o trevo que encontrei
era ciranda de malmequer
arranquei os desígnios por todos os caminhos
as estradas não conduzem, abduzem
é somente sol e poeira embaçando os olhos
os girassóis aguardam mais um arrebol
já não tenho mais silêncios
agora é tumulto e insanidade percorrendo-me
não sei se esqueci de dizer que as horas queimam
nesse fogo-fátuo que ousei te acender

sábado, 3 de setembro de 2011

695 - sonata de ausência para tango de bandeira

a vida é ruína, ausência, destroços
desde o dia em que te vi
não parou de pulsar
essa tormenta que atrofia o peito
me socorrem uma tosse, um engasgo
um verso que não esqueço
morto aos trinta e três, trinta e três

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

694 - sonata de ausência para ruídos de curta duração

já se vão as coisas para o resguardo
onde se coagula o despertencimento
a cadeira deixa de ser assento, pouso
será apenas madeira e suor do trabalho
estas palavras que uso agora em diante
serão caracteres a espera de significado
pois tudo é ausência neste árido terreno
nada há de florescer sem rigor de mãos

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

693 - sonata de ausência para fado, algibeira e tabacaria

trago somente na algibeira um fardo
o extravio de tantos mapas e bússolas
essa sede de tantos desertos
a foto amarela em que sorrias em alvíssaras
o fado de noite e silêncio por todos caminhos
pois perdoa este amor de passante
que apenas recolhe fragrâncias e olhares
nunca tive ímpeto para a salvação
nunca soube recolher os sargaços do mar
trago somente o travo de um verso,
desfolhado na tabacaria de defronte